segunda-feira, 31 de janeiro de 2011

autoretrato


















blanklives
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já tive mais medo
infinitamente mais
os dias rasgando
caminhos perversos
confluentes,
já fui outras mulheres
nenhuma como esta
e todas me surgem
estranhas e distantes
e até mesmo esta não
me coincide não me é
[eu temo-te, ela não].

onde me posso encontrar





















oprisco
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As minhas palavras
despi-as
até elas me ficarem
respirando nuas
debaixo da língua.

Volto-as
cuspo-as
sugo-as
sopro-as

estico-as
dos pés à cabeça
estendo-as

Faço-as grandes
como uma nave lunar
e pequenas como uma criança.
Procuro em toda a parte a linha
que me diga
onde me posso encontrar.

domingo, 30 de janeiro de 2011

rola mundo, rola-me...





















[...]
Depois de tantas visões
já não vale concluir
se o melhor é deitar fora
a um tempo os olhos e os óculos.
E se a vontade de ver
também cabe ser extinta,
se as visões, interceptadas,
e tudo mais abolido.
Pois deixa o mundo existir!
Irredutível ao canto,
superior à poesia,
rola, mundo, rola, mundo,
rola o drama, rola o corpo,
rola o milhão de palavras
na extrema velocidade,
rola-me, rola meu peito,
rola os deuses, os países,
desintegra-te, explode, acaba!

apenas querem explodir





















bluecoralinthesea
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[...]
Calo-me, espero, decifro.
As coisas talvez melhorem.
São tão fortes as coisas!
Mas eu não sou as coisas e me revolto.
Tenho palavras em mim buscando canal,
são roucas e duras,
irritadas, enérgicas,
comprimidas há tanto tempo,
perderam o sentido, apenas querem explodir.

somos seres olhados...




















utopic man
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Somos seres olhados
[Ruy Belo]


Se procuro o teu rosto
no meio do ruído das vozes
quem procura o teu rosto?

Quem fala obscuramente
em qualquer sítio das minhas palavras
ouvindo-se a si próprio?

Às vezes suspeito que me segues,
que não são meus os passos
atrás de mim.

O que está fora de ti, falando-te?
Este é o teu caminho,
e as minhas palavras os teus passos?

Quem me olha desse lado
e deste lado de mim?
As minhas dúvidas, até elas te pertencem?

sábado, 29 de janeiro de 2011

da janela vê-se o mundo gota a gota





















aleksandra88
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Parou agora de chover. Da janela vê-se o mundo gota a gota:
Um rosto sem nariz, olhos, lábios. Apenas lágrimas minúsculas
sobre as árvores e as casas. Uma delas desliza até
alguém que chora sentado na sua poltrona
digno, firme mas inquieto porque a casa evoca
aqueles que a habitaram no passado e que o confundem.

Não é por nostalgia que chora, mas pelo peso inteiro
da chuva, como se ele mesmo fosse o telhado
que suporta e se desgasta.
Como se a casa inteira, a transbordar de água e pedras,
revelasse um equívoco.

Qualquer um se pode preocupar com isto, passar a noite em claro
ou reproduzir a desolação num sonho. Existir numa cova.
Permanecer na terra, sob a chuva que volta.

o veredito:

sexta-feira, 28 de janeiro de 2011

meio corpo debruçado





















© Ragin



É uma e trinta
meio corpo debruçado
sobre a vida inteira. Despercebida
uma estranha câimbra que nasce
nas pernas.Brilha o que
resta da lua. Os meus vazios
procuram ritos, as minhas solidões
estão sobre os sapatos
que descalcei
porque me cercava a sua pressão.
Estou inteira como a vida que olho
como a vida que me deixa
me deixa meio corpo debruçado
sobre ela.

mudando em tudo, fiel a ti

conhecimento





Conheço os erros: há muito os cometi
só eu serei culpada ou inocente
Foi minha a poça se nela o pé meti
enfiei a mim própria o meu barrete

Faça o que faça agravam-se-me os erros
de erros quase só se faz a minha vida
A essa vida estou presa pelos cabelos
não me livro desta pele comida

por cicatrizes agarrada a mim
rugosa e com os anos a acabar-me
Sou eu a única que tem medo de mim
sei que de mim ninguém vai libertar-me.

quinta-feira, 27 de janeiro de 2011

do filho que eu não fui e que construo















hazargoksel


Passeio com meu filho pelo mundo
e é pouco para amá-lo este percurso.
Toco seus olhos de cristal escuro
e ele me vê robô, cavalo, urso.
Ele me vê raiz, me desafia,
briga e ama num elo conseqüente
com tudo os que é real, e me anuncia.


Passeio com meu filho à luz do dia,
e a luz fecunda a noite que nos une
num sonho latejante de silêncio.
Concentro-me de amá-lo com a uma
guarda a alucinação de seu perfume,
e penso, piso a terra, restituo
em dom de amar a amarga antecedência
do filho que eu não fui e que construo.

[seja bem vinda maria clara!...]

domingo, 23 de janeiro de 2011

há alguém aqui que treme





















ekhoz
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Mas o silêncio é certo.
Por isso escrevo.
Estou só e escrevo.
Não, não estou só.
Há alguém aqui que treme.

o que podes contra o vento?

























como se o vento trouxesse
recados
que pudesse abandonar
ao serviço do mensageiro
como se o vento te pudesse levar
e as palavras transformar
no milagre da cerejeira
não descuides o vento
que quem uiva
é lobo faminto
rodeia-te antes do essencial
faz-te cozinheira, semeia o teu quintal
o que por natureza rola
há-de rolar
e tu sozinha
o que podes contra o vento?

memória branca

























Alguém entrou na memória branca, na imobilidade
do coração.

Vejo uma luz debaixo da névoa e a doçura do erro
faz-me fechar os olhos.

É a ebriedade da melancolia; como aproximar
o rosto de uma rosa doente, indecisa entre o perfume e
a morte.

sábado, 22 de janeiro de 2011

com a facilidade com que se respira

























Gostava de te olhar a dormir
mesmo que isso nunca aconteça.
Gostava de te olhar,
a dormir. Gostava de dormir
contigo, entrar
no teu sono, sentir seu fluxo suave e nebuloso
a deslizar sobre a minha cabeça

e caminhar contigo nessa floresta luminosa
ondulante de folhas fluorescentes
com um sol aquoso e três luas
até à caverna onde terás que descer,
em direcção ao teu pior medo

Gostava de te oferecer o ramal de prata,
a pequenina flor branca, aquela
palavra que te protegerá
da dor a meio
do teu sonho, do desgosto
central. Gostava de te acompanhar
até ao cimo da longa escadaria
mais uma vez e de ser
o barco para te transportar de volta
com cuidado, uma chama
entre duas mãos em concha
onde o teu corpo se deita
ao lado do meu, e tal como nele entras
com a facilidade com que se respira

Gostava de ser o ar
que te habita durante um breve
instante. Gostava de se ser tão imperceptível
e tão necessária.

sobre o susto de saber

























Procuraste teus submergidos
nos seixos, nos logradouros,
nas enfermidades. Confrontaste

traços e deformações, aguçando
o ouvido junto à pele. Da multidão
há de surgir um vulto; dos ruídos

hão de voltar os passos; das mãos
vazias há de rebentar o calor.
De relance, de um cabelo, de

um timbre, de uma unha, um dente
e rios, rios sobre as frinchas de
luz, sobre a maça semidescascada,

sobre a xícara não lavada da brusca
evasão, rios sobre o susto de saber
que a esperança espúria, apátrida,

abre caminho para os teus
pulverizados, amor, nos busquem
e compadecidos, nos levantem.

velhos sinais...


















Nas mãos trago
velhos sinais
são minhas mãos de agora
não as de antes

dou o que posso
e não tenho vergonha
do sentimento

se os sonos e sonhos
são como ritos
o primeiro que volta
sempre é o mesmo

vencendo muros
se elevam na tarde
teus pés despidos

o acaso nos oferece
sua via dupla
tu com tuas solidões
eu com as minhas

e de qualquer jeito
se vivo na tua memória
não estarei só

teus olhares insones
não se dão conta
de onde ficou tua lua
a dos olhos claros

me olha logo
antes que um descuido
me torne outro

não importa que a paisagem
mude ou se quebre
me basta com teus vales
e com tua boca

não me deslumbres
me basta com o céu
do costume

nas minhas mãos te trago
velhos sinais
são minhas mãos de agora
não as de antes

dou o que posso
e não tenho vergonha
do sentimento.

sexta-feira, 21 de janeiro de 2011

quanto?




















kittysyellowjacket
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— Quanto me amas? Um milhão de alqueires?
— Oh, muito mais que isso, oh, muito mais.

— E amanhã? Talvez meio alqueire?
— Amanhã talvez nem isso.

— É esta, então, a aritmética do teu coração?
— Não; é o modo como o vento mede o tempo.

diluo-me...

quarta-feira, 19 de janeiro de 2011

vou-me sentar aqui

o que virá depois da solidão?





















ThyMournia
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Eles têm razão
essa felicidade
pelo menos maiúscula
................................................não existe
ah mas se existisse com minúscula
seria semelhante à nossa breve
......................................................pré-solidão

depois da alegria vem a solidão
depois da plenitude vem a solidão
depois do amor vem a solidão

já sei que é uma pobre deformação
mas o certo é que nesse durável minuto
a gente se sente
............................só no mundo
sem posses
sem pretextos
sem abraços
sem rancores
sem coisas que unem ou separam
e nesta única maneira de estar só
a gente sequer tem piedade de si mesmo

os dados objetivos são como segue
há dez centímetros de silêncio
.............entre tuas mãos e minhas mãos
uma fronteira de palavras não ditas
.............entre teus lábios e meus lábios
e algo que brilha um pouco triste
.............entre teus olhos e meus olhos

claro que a solidão não vem sozinha

se a gente olha por sobre o ombro seco
de nossas solidões
vê um longo e compacto impossível
um singelo respeito por terceiros ou quartos
esse percalço de ser boa gente

depois da alegria
depois da plenitude
depois do amor
............................vem a solidão

está certo
....................mas
o que virá depois
da solidão

às vezes me sinto
................................tão só
se imagino
ou melhor se sei
que além da minha solidão
..............................................e da tua
ainda estas aí
mesmo que se perguntando sozinha
o que virá depois
................................da solidão.

segunda-feira, 17 de janeiro de 2011

desenvolvimento pleno

























Penso que deveria haver uma grande, poderosa oração com uma única súplica: que cada um encontre em seu caminho apenas a sua dificuldade; quero dizer, aquilo que pelo menos está em certa proporção com as tarefas compreendidas e apaixonadamente aceitas em sua vida - isso poderia então ser grande, até extraordinariamente potente; poderia mesmo ser fatal. Pois quem, tão logo assuma uma luta genuína, não tem também a tácita e sagrada felicidade de sucumbir nela..., mas dentro dela, não fora, não numa região onde o que esta pessoa tem de melhor, de mais sério, mais exercitado, onde suas forças, seu julgamento, sua experiência desenvolvida parecem paralisados ou simplesmente não podem ser levados em consideração. Essa pergunta não deve ser efetivamente resolvida assim? Especialmente quando se pensa no artista, cujas tarefas o excedem total e incansavelmente no terreno que lhe é mais próprio. A ele, sobre todos os outros, seria de desejar e conceder que se confrontasse (se possível, desde a juventude) apenas com suas dificuldades!

um raio na sombra

metropolitanos






















Hengki24


Aqui estamos, atravessando
sem saber o nosso destino,
à espera que o próprio caminho
o torne evidente (mas não),
somos todos assim metropolitanos (urbanos),
saímos na estação errada,
lemos cabeçalhos, vemos o envelhecimento
nos rostos que connosco através
de túneis dantescos (cliché),
e pensamos (ou dizemos agora que pensámos)
que há um plano que nos ultrapassa (rodoviário),
um plano (subterrâneo)
de linhas que se cruzam com as linhas
da mão, interceptadas em cores
e com o guarda-roupa do nosso
tempo (capitalismo tardio),
atravessamos (atrasados), sob o sol
que imaginamos em cima (platónico),
interrompidos pelo parêntesis irónico
da consciência que talvez queira fazer
a diferença mas não faz nada (nada).

sábado, 15 de janeiro de 2011

crying

... e sempre diverso cada dia do que foste














kittysyellowjacket deviantART


Tal como és, assim te quero, e sempre
diverso cada dia do que foste;
cada imperfeito gesto que inventares
me fará desejar-te em outro verso.
Da arte do soneto feito mestre
no concurso sem regra da floresta,
na mais pequena folha te descubro
e no caule do vento é que te perco.
Da turva luz já retirei o emblema
que me sirva de rosto permanente
e venha o cabeçalho do poema;
e pedirei à noite que me empreste
um farrapo do manto incandescente
de que se veste, agora, para ter-te.

perfilados de medo






















anjart
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Perfilados de medo, agradecemos
o medo que nos salva da loucura.
Decisão e coragem valem menos
e a vida sem viver é mais segura.
Aventureiros já sem aventura,
perfilados de medo combatemos
irónicos fantasmas à procura
do que não fomos, do que não seremos.

Perfilados de medo, sem mais voz,
o coração nos dentes oprimido,
os loucos, os fantasmas somos nós.

Rebanho pelo medo perseguido,
já vivemos tão juntos e tão sós
que da vida perdemos o sentido...

sexta-feira, 14 de janeiro de 2011

lay your head down

era assim:





















mala lesbia
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era assim:
................queres?
................queres algo?
................queres desejar?
................desejas querer?
................desejas-me?
................desejas querer-me?
................queres desejar-me?
................queres querer-me?
................queres que te deseje?
................desejas que te queira?
................queres que te queira?
..................................quanto me
queres?
..................................quanto me
desejas?
................ah quanto te quero
................quando te quero
................quando me queres...

o mais que sei e sinto

terça-feira, 11 de janeiro de 2011

fanatismo

revelação
























Era amor que eu queria, mas dizer-te
tanto me custa em queda e medo e abalo
que, por temer-te o espanto, eu sempre calo
para iludido, assim ao menos, ter-te.

Revelação do amor, jamais ligado
o extremo do possível vai prender-te?
Zelo, libertação, ao fim rever-te,
Pôr asas no meu ser desalentado.

Ah, pureza de ter o que não cabe
na humana construção da mão mesquinha,
saber tudo o que o amado ser não sabe.

Esta é a sabedoria que não cansa,
roteiro de outro olhar que nos definha,
luta que esgota a vida e não alcança.

detalhes














© Helle



Solidariedade nas pequenas coisas,
nos detalhes cotidianos que nossos olhos endurecidos
........................................................[não percebem,
nas possibilidades prodigiosas que nossa energia não
.....................................................................[atina,
porque estamos remotamente ligados às catástrofes
.......................................................[de além oceano
quando na pedra da nossa calçada uma cabeça tomba
...........................................................[sem socorro.

Solidariedade de dividir: o lugar, o pão, o tempo, a
..........................................................[oportunidade,
o espaço.

Solidariedade de medir os gestos, de pensar os gestos
..............................................[(uma balança mágica).

Baixar os olhos, conhecer com atenção,
para depois amar.

segunda-feira, 10 de janeiro de 2011

o lugar





















EiMoOo
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[...]
A gente quer sempre estar num lugar – um lugar onde tudo está por acontecer para nós, por nós, um lugar que se põe em movimento, como uma flor que se abre ao sol, e se recria conforme os nossos desígnios. Mas para chegar lá, é preciso percorrer tantos outros lugares, lugares desacertados, desencontrados, lugares onde se fazem silêncios embaraçados, onde sorrimos sem vontade, onde o tempo parece ser cumprido em vez de degustado, onde as pessoas não nos abalam ou alteram, onde invocamos secretamente o nome de outro lugar.

domingo, 9 de janeiro de 2011

vida na expectativa


















ekhoz


Vida na expectativa.
Espectáculo sem ensaios.
Corpo sem tirar medidas.
Cabeça sem reflexão.

Não sei o papel que desempenho.
Sei apenas que é o meu, intransmissível.

É já em cena que tenho de adivinhar
de que trata a peça.

Debilmente preparada para a honra que é a vida,
dificilmente aguento o tempo de acção que me é imposto.
Lá vou improvisando embora deteste improvisar.
Passo a passo tropeço no desconhecimento das coisas.
O meu modo de vida cheira-me a provincianismo.
Os meus instintos são crasso amadorismo.
O medo do palco, explicando-me, ainda me humilha mais.
Os factores atenuantes parecem-me cruéis.

Palavras e gestos sem regresso,
estrelas por contar,
o carácter – um casaco à pressa abotoado,
são os deploráveis efeitos desta urgência.

Treinar ao menos uma quarta-feira,
ou repetir uma quinta ao menos uma vez!
E já lá vem a sexta com um guião que ignoro.
Está como deve ser – pergunto
(com um pigarro na voz
pois nem sequer me foi dado pigarrear nos bastidores).

È ilusória a idéia de que é só um exame rápido
realizado em sala provisória. Não.
Fico de pé diante do cenário e dou conta da sua solidez.
Impressiona-me o rigor de cada adereço.
o palco rotativo há já muito que funciona.
Já estão acesas até as mais distantes nebulosas.
Não tenho quaisquer dúvidas que se trata da estreia!
E, seja o que for que eu faça,
para sempre se transforma no que eu fiz.

te sobrevivi



caminharei devagar

















simondfilip
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Com o consentimento da neve
caminharei devagar.
Alguém haverá à espera junto do fogo
e eu, que estarei cega pelo frio,
farei paragens breves,
sacudirei o guarda-chuva e começarei de novo.

O único segredo é não sentir-se
imensamente cheio de verdades.
Não aceitar nunca os convites
que o nevoeiro
sugere ao fazer ninho com os seus disfarces
de paisagem feliz, de grandes sonhos.

Alguém haverá que diga, perdeu-se,
alguém sairá a procurar-me,
e levará o calor de uma garrafa
onde poderei mandar-te esta mensagem.

sábado, 8 de janeiro de 2011

aí cresce a rosa

desassossegos














supermalade
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Não sei grande coisa de desassossegos,
o mais que faço é aproximar-me de uma varanda
como de uma falésia, esquecer-me, mesmo,
do guarda-chuva e sentir o céu, fechar
os olhos quando o desejo vem e não te ter
como se te tivesse.